domingo, 5 de outubro de 2008

Enquanto o avental ainda é o algoz...

Em pleno século XXI, é lamentável ter que escrever uma matéria como essa e juntar a coisas já escritas sobre o assunto anteriormente, mas, sem dúvida, isso é um dos maiores absurdos que ainda existem no mundo "moderno"...ou pelo menos, que se acha "moderno".
Em razão dos abortos, dos infanticidas e da carência de cuidados com as meninas, faltariam hoje 90 milhões de mulheres na Ásia. É um número que conta de uma forma que lhe é própria o drama silencioso das desigualdades entre homens e mulheres na China: em 2006, se deixarmos de lado as crianças acometidas de patologias, cerca de 98% das crianças chinesas disponíveis para adoção e apresentadas pela organização Médicos do Mundo eram meninas.
"Na maioria dos casos, elas são abandonadas nos dias que se seguem ao nascimento", explica a pediatra Geneviève André-Trevennec, que dirige a missão pela adoção desta entidade, a maior empreitada francesa desta natureza. "Com a política do filho único, que é aplicada com rigor nas cidades, os pais não querem mais ter uma filha porque são os rapazes que transmitem o nome e que se encarregam de sustentar seus pais quando estes envelhecem".
A China não é o único país a ser atingido por esta preferência marcante em favor dos meninos: segundo a demógrafa Isabelle Attané, a Ásia tornou-se o "continente negro" das mulheres. Em razão dos abortos seletivos, dos infanticidas e da carência de cuidados para com as meninas, segundo ela faltariam 90 milhões de mulheres na Ásia.
Esta anomalia demográfica, que foi denunciada já em 1990 pelo economista Amartya Sen em artigo publicado na revista "New York Review of Books", atinge a China, a Índia e o Paquistão, assim como o Bangladesh, Taiwan ou a Coréia do Sul. Se fosse aplicada para a Ásia uma taxa de masculinidade "normal" de 98 homens para 100 mulheres - para calculá-la, os demógrafos levam em conta a proporção natural de meninas e de meninos no nascimento, as diferenças de mortalidade infantil entre os dois sexos e a defasagem de esperança de vida entre os homens e as mulheres -, este continente contaria 90 milhões de mulheres suplementares.Onde foram parar esses milhões de mulheres? "São meninas que foram impedidas de nascer, que foram mortas depois do nascimento ou que deixaram morrer quando muito novas", resume Bénédicte Manier no seu livro "Quand les femmes auront disparu" ("Quando as mulheres tiverem desaparecido", editora La Découverte, 2006). Com o desenvolvimento da ultra-sonografia, as famílias da Índia, da China, de Taiwan ou da Coréia do Sul podem conhecer o sexo do seu filho antes do nascimento."
A China proíbe identificar o sexo do feto durante a ultra-sonografia, mas basta um sinal do médico para saber se é um menino ou uma menina", conta Isabelle Attané, que publicou em 2005 "Une Chine sans femmes?" ("Uma China sem mulheres? ", editora Perrin). Hoje, diz ela, "a estimativa é que mais de 500.000 fetos femininos são suprimidos desta forma todo ano na China".
Este culto do menino, que é uma tradição na Ásia, foi agravado ao longo das últimas décadas pela redução do número de crianças de uma mesma família. Com a política chinesa do filho único e a diminuição da fecundidade em países tais como a Índia ou a Coréia do Sul, o sexo das crianças passou a ter uma importância decisiva. "Quando a fecundidade era elevada, uma família dificilmente acabava ficando sem nenhum menino", comenta o demógrafo Gilles Pison num estudo publicado em 2004 pela revista "Population et sociétés" (População e sociedades), uma publicação do Ined. "Com seis filhos, a probabilidade de não ter meninos é muito reduzida, inferior a 2%. Ao passo que com dois filhos, esta probabilidade está próxima de um quarto".
Na Ásia, os abortos seletivos transformaram por completo o equilíbrio entre os sexos no nascimento. Enquanto nas áreas onde não existem discriminações, nascem 105 meninos para 100 meninas, certas regiões do continente apresentam taxas de masculinidade no nascimento mais que suspeitas. Segundo Isabelle Attané, nascem atualmente 117 meninos para 100 meninas na China e 111 na Índia.
Em certas regiões, os números são ainda mais impressionantes: os Estados indianos do Pendjab e da Haryana recensearam, no período de 1998 a 2000, 125 nascimentos de meninos para cada 100 de meninas. Nas províncias chinesas do Jiangxi e do Guangdong, em 2000, o número de meninos havia alcançado 138 para cada 100 meninas.
As discriminações não se limitam ao nascimento. Basta comparar a taxa de mortalidade infantil dos dois sexos para compreender que na Ásia, as famílias não atribuem o mesmo valor à vida de um menino e de uma menina. Na Europa, na África, na América do Norte e na América do Sul, a taxa de mortalidade infantil masculino é sempre superior à taxa feminina, por razões biológicas, mas a Ásia desafia as leis naturais, apresentando - mais uma vez - um desequilíbrio marcante em detrimento das meninas. No Bangladesh ou no Paquistão, e, sobretudo, na China, a sua taxa de mortalidade antes da idade de um ano é nitidamente superior àquela dos meninos.
Como explicar esta mortalidade excessiva das meninas recém-nascidas do continente asiático? "Elas são simplesmente vítimas de negligência nos cuidados médicos e na alimentação que elas recebem", explica Isabelle Attané. "Os programas de vacinação são mais respeitados quando se trata de um menino e, quando eles estão doentes, eles são conduzidos rapidamente até o médico, ao passou que os pais tardam a fazê-lo para uma menina". "A alimentação, ela também, é diferente dependendo do sexo das crianças", explica a pesquisadora. "Na Ásia, muitos pais fazem de tudo para manter o seu filho com boa saúde, ao passo que eles consideram como menos grave a possibilidade de perder uma filha".
Se os meninos são bens tão preciosos, é por razões culturais que variam geralmente de um país para o outro. Na China, os filhos herdam os bens da família e, sobretudo, eles cuidam dos seus pais quando estes se tornam mais idosos, o que constitui uma tarefa fundamental num país que não dispõe de nenhum sistema organizado de aposentadoria. Na Índia, é a tradição do dote que dá azar para as meninas: quando do seu casamento, elas devem oferecer aos seus sogros uma quantia importante que não raro obriga as famílias de renda modesta a se endividarem. Nas regiões hinduístas, somente um rapaz pode acender a fogueira funerária dos seus pais, o que lhes permite escapar da errância eterna.
Ao longo das próximas décadas, este desequilíbrio em favor dos meninos modificará profundamente o perfil do continente asiático. "Os rapazes correm o risco de sofrer os seus efeitos durante a sua vida inteira, principalmente quando eles terão idade para formar um casal", sublinha o demógrafo Gilles Pison na revista "População e Sociedades". "As jovens mulheres, minoritárias, não terão dificuldades para encontrar um cônjuge, enquanto uma parte dos rapazes acabará ficando sem uma parceira".
Esta situação, que já vem provocando atos de violência contra as mulheres e tráficos de esposas, será agravada por uma incerteza demográfica: ao dar preferência aos meninos, a Ásia está inventando uma sociedade que, no futuro, contará menos mulheres, e, portanto, menos crianças. Inclusive menos meninos.
Não estaria na hora das feministas bastante preocupadas em rasgar o avental e vestir paletó e gravata se preocuparem com o que é de fato relevante para as mulheres da nossa sociedade?



Nenhum comentário: